24.5.16

“Pega a carteira na gaveta do armário da cozinha. Entre os documentos e cartões de banco há uma foto recente sua em tamanho passaporte, uma dessas fotos neutras e burocráticas que têm como único objetivo o reconhecimento da pessoa. Costuma levar uma foto dessas consigo para lembrar do próprio rosto, já que as fotos das carteiras de motorista e de identidade são respectivamente pequena e defasada demais para essa finalidade. Retira a foto do envelope plástico. Vai até o quarto, abre a mochila com seus pertences pessoais e pega o álbum de fotos principal, aquele que funciona quase como um catálogo para os rostos de maior importância afetiva. Encontra a fotografia do avô que ganhou de presente do pai e a compara com sua foto de passaporte. Depois vai ao banheiro e ergue a fotografia do avô ao lado do espelho. Olha alternadamente para o rosto do avô e para o próprio reflexo. Passa a mão na barba que está crescendo em seu rosto desde que conversou com o pai pela última vez. Encontra uma tesoura cega e meio enferrujada na gaveta dos talheres, recorta com dificuldade o retrato do avô até reduzi-lo ao tamanho aproximado de uma carteira de identidade e guarda o recorte no envelope plástico da carteira, no mesmo lugar onde até então guardava a própria foto.” Daniel Galera em Barba ensopada de sangue [São Paulo: Companhia das Letras, 2012].

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