“Pega a carteira na
gaveta do armário da cozinha. Entre os documentos e cartões de banco há
uma foto recente sua em tamanho passaporte, uma dessas fotos neutras e
burocráticas que têm como único objetivo o reconhecimento da pessoa.
Costuma levar uma foto dessas consigo para lembrar do próprio rosto, já
que as fotos das carteiras de motorista e de identidade são
respectivamente pequena e defasada demais para essa finalidade. Retira a
foto do envelope plástico. Vai até o quarto, abre a mochila com seus
pertences pessoais e pega o álbum de fotos principal, aquele que
funciona quase como um catálogo para os rostos de maior importância
afetiva. Encontra a fotografia do avô que ganhou de presente do pai e a
compara com sua foto de passaporte. Depois vai ao banheiro e ergue a
fotografia do avô ao lado do espelho. Olha alternadamente para o rosto
do avô e para o próprio reflexo. Passa a mão na barba que está crescendo
em seu rosto desde que conversou com o pai pela última vez. Encontra
uma tesoura cega e meio enferrujada na gaveta dos talheres, recorta com
dificuldade o retrato do avô até reduzi-lo ao tamanho aproximado de uma
carteira de identidade e guarda o recorte no envelope plástico da
carteira, no mesmo lugar onde até então guardava a própria foto.” Daniel Galera em Barba ensopada de sangue [São Paulo: Companhia das Letras, 2012].
Nenhum comentário:
Postar um comentário